Existe o medo de não ser completo. De tudo o que foi feito e
pensando e sentido, no fim, não alcançar um índice mínimo de importância ou
satisfação. Tudo o que foi dedicado a um amor simplesmente não ser suficiente:
as coisas belas acabarem como se chega ao fim de uma caixa de bombons e não se
te mais o que fazer com a caixa e ela vai para o lixo reciclável, independente
do trabalho que tenha sido criar a caixa, desenhar o formato, pintar,
desenvolver a melhor embalagem e contratar funcionários para os trabalhos
manuais e administrativos e um entregador dos produtos e caixas de supermercado
para vendê-la. Independente de tudo, o seu ciclo chega ao fim e é isso e na há
nada mais que se possa fazer a respeito.
Um dia chegar a certo ponto de uma grande jornada de
trabalho – vinte anos na corporação e se perceber tão essencial para a
continuidade da firma quanto uma catraca que, depois de virar e virar e virar
para todo lado, não combina mais com o ambiente e a gestão, que passaram a ser
modernas e clean e não comportam mais nada que lembre um passado remoto, por
mais funcional que tenha sido por tanto tempo. É sempre hora de evoluir em
algum lugar e de repente é ali e você não cabe mais naquele espaço, nem nada
relacionado a você, nem seu modo de pensar e suas estratégias classificadas de
“pouco imaginativas” por alguém com a metade da sua idade e o dobro da sua sagacidade.
Criar um filho por trinta anos e descobrir que a vida deveria
ter sido mais do que se preocupar com cada detalhe da vida de alguém que um dia
vai fazer as malas para morar em Paris e se casar com uma pessoa que não come
carne vermelha nem laticínios nem permite que se entre em casa de sapatos.
Trinta anos de fadiga para se ter de tirar o sapato para entrar na casa do
próprio filho e depois voltar pra casa vazia que não te acolhe bem porque você
nunca pensou em si mesmo em primeiro lugar então tudo tem a cara de outra
pessoa que não vai mais fazer uso de nenhuma comodidade criada especialmente
pra ele e que agora não pode ser usada por você, como tentar se acomodar em uma
cama que não é sua e ser cortada pela faca enquanto prepara a própria comida
porque a cozinha não é sua e a casa não tem seu cheiro e tudo te expulsa dali e
você se vê sem filho e sem casa e sem saber quem é aquela ali no espelho e de
onde veio tanta marca de expressão e porque não usou mesmo o filtro solar.
Tenho inveja das pessoas que conseguem viver dia a dia. Um
pouquinho por vez e estão satisfeitas com aquilo que lhes aconteceu naquele
dia, naquele pequeno e simples e bonito dia. Que não sofrem imaginando o que
poderá acontecer dali a duas horas ou trinta dias, dependendo de como a
situação está. Das que separam o tempo livre para serem de fato, livres, sendo
felizes e tendo prazer sem atinar pro sofrimento do mundo que a cada segundo
pode ser maior e maior até soterrar a todos em uma grande explosão, que, na
prática, talvez não aconteça e então vamos deixar por isso mesmo e ver um filme
na TV e passear com as crianças e comer um doce de batata doce.
Queria ter uma capacidade de deixar de maquinar o tempo todo
sobre o que pode nos ocorrer ou o que já nos ocorreu ou o que deveria ter,
caramba, acontecido, e de que forma e quando e por quê. De não pensar que daqui
a tantos anos tudo isso pode ter sido besteira e me ver olhando para fotos e
tendo a certeza de que foi mesmo uma grande bobagem ter investido tanto tempo
naquele trabalho ou no romance que depois se mostrou um desastre quando houve
uma situação inesperada qualquer e as duas pessoas se deram conta de que as
coisas de tornaram insustentáveis.
Queria conseguir sentir que cada pequeno passo é uma benção
e que sendo ele seguido de outros 140 que formarão um caminho coerente ou não,
faz sentido por si só e que mesmo que seja o último e a vida acabe no meio de
uma festa em que você está contando sobre um filme que assistiu, dizendo a
frase de um personagem e imitando os trejeitos dele e não consiga terminar por
um mal súbito, que mesmo assim tudo terá sido válido e bom e era isso mesmo que
havia para ser vivido. Que não precisava de encerramentos de ciclos, de
conclusões incríveis e entendimentos metafísicos sobre cada detalhe absurdo da
vida e da morte e do gosto do sorvete de Flocos. Que pode ser isso aí mesmo,
isso aí que está acontecendo ou não acontecendo, esse azul do céu que agora é
menos claro e depois vai ser escuro e depois claro de novo. Que é isso que se
tem e no fim, não era questão der ser bom ou ruim ou de se classificar e julgar
pessoas e acontecimentos, mas que simplesmente se é e se foi e isso foi,
afinal, a sua vida.