..e todos os vultos acabam sumindo, menos aqueles que a gente faz questão que fiquem. Ora, a gente refaz tudo no começo do ano, não refaz? Me traz aquela xícara de água que vou botar no vasinho ali, faz tempo que não águo. Só boto água no começo do dia, agora são mais de três horas. Mas coitada da planta, não tem culpa da minha mania. Eu e as minhas manias. Cadê aquela vela de estrela que tava aqui?
Não, eu não acho que todo mundo perde o sonho, com a vida. Porque, como eu sempre disse pro Abel, desistir do sonho é parar de alimentar a alma. E a minha ainda tem fome, nesses tempos tão ruins pra gente que ainda resolve sonhar. Talvez eu tenha jogado fora a vela. Acho que tinha cheiro de... morango?
Velas com cheiro são boas. Mas esses dias, vi no mercado sacos de lixo com cheiro de frutas. Era... limão para metais, uva para papel, laranja para vidros e... como era mesmo? Não sei, li por alto.
E apareceu um moço no portão dizendo: "tem alguma coisa pra dar?" e eu ia estender a mão e oferecer um abraço, mas duvido que ele aceitasse. A gente oferece aquilo que tem, então eu lembrei de pegar um quilo de arroz no armário, mas o pacote já tava aberto. Foi aí que vi o tanto de gelatina acumulado na despensa. E nem era tempo de festa junina, quando as crianças pedem "prenda" nas casas e a coisa mais fácil de dar é gelatina... Mas entreguei pro rapaz algumas moedas guardadas no fundo da bolsa e algumas roupas numa sacola, ele sorrindo e dizendo "eu levo pra minha irmã" e saindo, andando até o fim da quadra e virando a esquina.
Mas a bolsa, sabe, não tem mais tantas moedas quanto antes. É que as padarias têm colocado aviso dizendo "agradecemos aos clientes que pagarem com moedas"... Sim, eu acho que a riqueza do país tá nas moedinhas, todas guardadas nas gavetas das casas. Eu mesma não me importo muito com elas não. A riqueza, as moedas. Nem com as gavetas.
Foi semana passada que você viu uma criança te espiando no vestiário da loja? Eu acho que você fez bem em reclamar com a mãe do menino, mesmo ela tendo gritado pra todo mundo que você era uma sem-vergonha. Eu acho que as pessoas tão muito sem criatividade. Eu prefiro os dentes-de-leão. É. Do que as marias-sem-vergonha. Cê pega água pra eu colocar na plantinha? Eu só rego ela de manhã, mas ela não tem culpa das minhas manias. Hoje ainda não agüei ela.
Falando nisso, vieram aqui em casa perguntar se eu queria colaborar com o asfalto na minha rua. A mocinha, toda suada, segurando a tabuletinha marrom, coitada, insistiu e disse que se um dos moradores não aceitasse pagar tantos reais, em até sete vezes, até sete vezes, ela disse, a rua não podia ser asfaltada. Você veja, eles vêm pressionar, colocando a culpa na gente! Ora, minha filha, eu falei, eu já pago IPTU, já pago a taxa do lixo, já pago pra prefeitura me deixar morar nesse pedaço de casa depois que o Abel morreu. Aí você vem e me diz que se eu não pagar os vizinhos vão ficar sem asfalto? Foi o prefeito que prometeu asfaltar quinhentos quilômetros de ruas? Então manda os vizinhos cobrarem dele, que eu não prometi nada a ninguém. Ela fez cara de brava e disse "então, boa tarde pra senhora". Eu ia oferecer um copo de água, ela toda suada no pescoço, cê tinha que ver. Achei ela elegante, não perdeu a pose nem quando o gato preto da Joana pegou na perna dela, que nem faz com todo mundo.
Eu ia falar pra ela, mas ela não deixou. Que eu ainda tenho gosto de ver passar aqueles caminhões pesados aqui na rua, que eles levantam pó e logo vem a vizinha da frente varrer a varanda e reclamar que não deviam passar caminhões daquele tamanho no bairro. Ela varre, varre, entra em casa e chacoalha todos os lençóis e arruma de volta na cama. Tem vezes que ela tão fica irritada que recolhe a roupa do varal, acho que coloca na máquina de novo, porque dali a pouco corre estender de novo, tudo pingando...
Aquela sua colega ainda tá procurando gente pra trabalhar na casa dela? A que trabalhava pra Leonilda tá sem serviço e grávida, mas ainda de uns três meses. Já tem dois em casa e eu digo pra ela se cuidar, mas não adianta. Ela aceita meio período, por dia, por mês, é bem esforçada. Diz que o marido quebrou a cabeça na porta, foi quando a polícia entrou de supetão na casa procurando droga, mas não tinha nada não e mesmo assim reviraram tudo, aí foram encontrar escondido no Fusca da mulher que mora nos fundos, e na foto do jornal saiu o carro, a droga, as casas da vizinhança e o marido dela na frente da casa, com a cabeça sangrando. A manchete dizia: "Polícia prende cinqüenta quilos de cocaína na favela". Daí o marido foi procurar emprego no mercado dali de perto e o gerente perguntou "não foi você que saiu no jornal esses dias?", e olharam pra ele de cima a baixo. Aí até explicar que não tinha nada a ver com o trem... Eu sei é que tenho medo que algum dia um grande mal-entendido estrague a minha vida. Se bem que, estragar o quê, né? Eu nem saio mais de casa, só daqui prali, nem a sua tia não vem mais me buscar pra ir na casa dela.
Mas não sei não, se eu encontrasse uns cem mil na rua, acho que ficava pra mim. Quem é que devolve, hoje em dia? O senhorzinho que devolveu o dinheiro perdido no táxi dele foi chamado de idiota pelo pessoal do ponto, tudo amigo dele. Mas que belos amigos, né? Eu até podia procurar o dono, na verdade, mas daquele jeito, meio por cima, torcendo pra não encontrar. Teve um dia que eu achei vinte reais no chão, mas veio uma moça com outra menina e, bem rapidinho, colocaram o pé em cima e já abaixaram pra pegar. Saíram rindo, as duas. Ah, deixa pra lá...
Eu fico assustada sabe com o quê? Com aquela vontade que o mal aconteça com quem foi ruim pra gente. Quando eu era mais nova eu guardei uma mágoa de uma amiga da tua tia, eu fiquei meses pensando "quem ela pensa que é pra falar assim comigo?" Passou uns dias e eu soube que ela tinha sofrido um acidente de carro, nada muito grave, e depois foi demitida, ainda por cima. Aí aquela vozinha dentro da gente me dizia: "viu, viu? bem feito, ela mereceu!". Eu acho que fiquei sem me olhar no espelho uns dias, viu. Acho que eu tinha medo de a imagem me olhar com cara feia. Mas volta e meia acontece isso. Quando eu percebo que fiz de novo, abaixo a cabeça e pego meu espanador. Eu espano, espano os móveis da sala e só levanto os olhos pra ver a rua depois que a vergonha passa.
Sei lá, eu penso que quando as pessoas vão embora, ficam só os vultos. Assim como tem gente que pensa que depois da morte os espíritos ficam vagando aqui por perto. O vulto de uma pessoa nunca abandona quem ela acompanhou a vida toda. Você deve ser o vulto de muita gente, sabia? Não fala com seu pai há quanto tempo mesmo? Acha que ele não tem remorso disso? Acaba que ele vai virar um vulto pra você, cada dia maior, e no dia que disserem "ah, o PT já foi um bom partido", você vai derramar umas lágrimas sem querer, vai ver o vulto crescer aí perto de você. Aí vai pedir licença, vai no banheiro e vai ficar triste e vai ter que tomar remédio pra depressão. E tudo por quê? Por que você deixou ele virar um fantasma na sua vida, sem precisar. Eu tenho a impressão que alguns fantasmas a gente não consegue evitar, mas os que a gente pode, eu acho bom é fazer isso logo, consertas as coisas, sabe? Uma hora ou outra a gente entende as coisas que passaram. E aí todos os vultos vão embora, menos aqueles que a gente faz questão que fiquem, tem uns que a gente não se livra mesmo.
Aquelas marcas, eu já te disse, as marcas de quem viveu aqui, aqui nessa sala, ficam guardadas na parede. E quando, um dia, tocar aquela música que a pessoa gosta, elas, as marcas, vão tomar conta da sala. Que nem quando as valsas tocavam nos bailes que a gente ia, antigamente. E a sala pode até ser outra, pode ter outras coisas, ser pintada de roxo, pode até não ter aquele vaso de planta, pode ter virado outra coisa. Pode até não ter mais nada mesmo, igual eu falei. Mas os vultos ficam. Eles ficam sempre. E a gente leva pra outro lugar. Eles ficam presos nas estatuazinhas, aquelas que a gente deixa ali em cima da estante. Ficam nos copos, ficam no acolchoado. E sabe o que eu acho? Que a gente é que gosta que eles continuem ali. Pra ter com quem tomar café de vez em quando. Cê não acha, não, Izabel? Izabel? Faz um favor? Pega aquela caneca ali e me traz uma água da torneira. Acho que faz dias que eu não rego a plantinha. Coitada.