sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Caixa alta, férias, relógios

Ficar parada, sem trabalhar, para ela, era como estar no meio de uma grande corrida, com corredores desesperados, sem se mexer. Só olhando enquanto o mundo corre ao seu redor. E as pessoas esbarram nela: “Fica pelo caminho atrapalhando os outros, veja se pode uma coisa dessas”. E os coelhos brancos, com seus fraques e relógios estão sempre atrasados em busca de algo que não sabem exatamente o que é. Eles ficam satisfeitos, de vez em quando, ao conseguir chegar pontualmente ao trabalho. “Olha que legal, cheguei dez minutos mais cedo hoje, quer dizer que tenho tempo de respirar antes de receber um milhão de tarefas que não terei condições de cumprir hoje e que me farão dormir mal de noite e me farão chegar atrasada de novo amanhã, quando terei mais duzentas e trinta tarefas que não cumprirei porque se elas forem cumpridas, minha missão acaba aqui. E ainda sou jovem para morrer”.

Caixa alta, por exemplo. Não entendia porque as pessoas, ao escreverem em cadernos ou computadores ou recados para a empregada ou em letreiros de loja se davam ao direito de usar a letra maiúscula onde ela não era necessária. “Comunicamos os Funcionários que nesta Sexta-feira não haverá Expediente por conta da manutenção dos computadores da Empresa”. Quem disse que a pessoa poderia escrever Expediente em caixa alta? E aquelas que acham que os dias da semana têm de começar com letra maiúscula? É como se dessem uma grande importância a algumas palavras. Como rainhas que olham para seus súditos por cima, lá no alto, no castelo. E você pode dizer: não, não é com letra maiúscula. Mas depois virão outros anúncios, outros parágrafos, outras linhas com palavras que mandam nas outras palavras. E ninguém sabe por que. Simplesmente porque parecem ser palavras que precisam ser contempladas, idolatradas. Sexta-feira. Do alto de sua altíssima importância e de sua bondade de compartilhar a existência com as míseras outras, como sapato, cruzadinha ou blitz.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Silêncio: a cidade só quer respirar


A madrugada continua tendo aquela calma que me faz sentir. Nessas poucas horas Curitiba para, que é uma cidade que para sim. A Visconde de Guarapuava não tem nenhum carro às três e meia da manhã. As pessoas que se apressam ao meio dia, que suam esperando o semáforo abrir às quatorze horas e que esbarram em outras e pedem desculpas às 17h não estão mais lá às três e meia da manhã. Já foram embora, entraram nos ônibus do Terminal Guadalupe, compraram o refrigerante que tomaram vendo televisão antes de dormir. E estão em casa. Outras, sem casa, na rua. Mas paradas. Não andam a essas horas. Assim, a avenida, grande e cheia de luz, fica vazia de vida. O asfalto, feliz, descansa. E sente a temperatura mudar, grau a grau, até dar nove horas e o sol queimar ele novamente, até os pneus passarem, pouco gentis, duros, sem dar a ele tempo de respirar.

O Jardim Botânico de noite fica vermelho. Sim, a iluminação faz com que ele pareça uma flor estranha, daquelas que não sei o nome, talvez gérbera, três cúpulas vermelhas lá longe. Lá as flores e as outras plantas também dormem, que precisam estar bonitas para que as visitas do dia seguinte se encantem com elas. E digam que Curitiba é uma cidade linda. Mesmo não sendo tanto assim. Ou sendo só de madrugada, não sei ao certo.

Quando as pessoas dormem sinto que a cidade respira. Uma respiração pesada no início, mas que traz alívio e depois se torna mais leve. A cidade começa a dormir quando as pessoas começam a acordar. Quando ela se acostumou com o silêncio, o barulho já voltou a acontecer. As notícias são dadas com ares de grande importância. Novas mortes, brigas em boates, políticos metidos em escândalos, matérias frias sobre a troca de presentes depois do Dia das Crianças. Receitas culinárias em programas matinais. Capítulos antigos de novela reprisada gravada em um tempo em que nada disso ainda havia acontecido. Como era antes, será? Eu sabia, eu vivi aquela época. Mas ela parece distante. Depois de acordar, dormir, acordar e ver a cidade respirar, depois de ela se ressentir dos passos brutos que acompanha sobre si mesma aquele tempo me parece ter acontecido há muitas décadas. E talvez tenha sido assim. Então respiro, ouço o silêncio, presto atenção aos minutos, um após o outro que sem barulho se sucedem. E são marcados em relógios que devem despertar em algumas horas. Pra acordar pessoas que têm muitos compromissos e não podem se dar ao luxo de ouvir o silêncio.

Eu posso. Então fico aqui e o faço.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O ontem logo ali


Encontrei esse texto meu em um blog coletivo - Nosso Garfo de Cada Dia do qual fiz parte em 2006. Mais um com cara de "nem te ligo, tristeza". Gosto deles, formam uma série interessante.

Igual unitário
Gislaine Bueno


...Aliás, ontem me disseram adeus. Eu disse "até logo". Com cara de quem perdeu o trem. E a viagem. E ficou em casa, e tirou as pilhas do relógio. Eu pensei que a minha solidão fosse diferente. Mas ela me iguala. À você e à eles. Todos os eles que caminham por aí. Trazem em pacotinhos de pão as mesmas frustrações. Empurram portas giratórias. Tomam comprimidos coloridos pra doenças não-específicas.

Eu achei que havia algo de diferente nas minhas ações. Talvez houvesse um pingo de singularidade no conjunto de palavras, atitudes, silêncios. Não havia. A ilusão maior, e que move, é pensar que a sua vida daria uma grande história. Um romance? Um filme, tendo bossa nova como trilha sonora? E uma atriz fumando em um congestionamento, com cara de "eu sou cool"?
Alguns se conformarão ao se identificar com personagens da TV.

Mas a maioria das vidas não é capaz de preencher uma página de jornal. Destinam-se apenas à duas linhas, no obituário. Com erros na grafia de seus nomes. Valas comuns. Trajetos quase idênticos.

A minha solidão é como a do homem dormindo na calçada, como a da senhora na lojinha de costura, como a do rapaz que frequenta as altas rodas da sociedade e tem um grande círculo de relações.

Girando sozinho.

Os fins nos igualam. A morte, o adeus, o "não dá mais", o tchauzinho pro carro antes da viagem. Sentimentos me igualam. E o roteiro é universal. Com os diálogos previstos após dois segundos de olhar cabisbaixo e três segundos antes do abraço. Com a sequência exata de frases ditas e hesitações. As palavras de consolo são iguais. Votos de felicidade, tais e quais.

Então você entra na Casa dos Espelhos. E não acha diferença entre o que é e o que vê. Pensa em pedir de volta o dinheiro da entrada. Mas o cartaz, escrito ao contrário, diz: "a interpretação faz parte da prova".

O sentir-se só é tão igual, passei a pensar que ele nos unia. Que nada, ele apenas torna comum.
 
E isola.
 
Pessoas numeradas em códigos de barras.