sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Feliz ano novo, garota



Não acredito em datas comemorativas. São só dias criados pra organizar as pessoas em torno do mesmo interesse na mesma hora, o mundo gastando um dinheiro que nem existe com coisas desimportantes. Mas era virada do ano, eu tentando ser otimista e compartilhar votos de felicidade com estranhos a trezentos quilômetros de casa. Sozinha. E lá vinha o rapaz de camiseta branca e sua garrafinha de cerveja, embalado pela música eletrônica, seus dentes brancos mais brancos ainda com a luz negra do lugar. No mesmo instante em que ele decidia quem seria o seu próximo alvo eu só pensava quanto tempo levaria pra conseguir entrar em um banheiro. Passar ilesa pela fila de vinte garotas bêbadas e ainda encontrar um vaso sanitário razoavelmente limpo era a minha primeira meta do ano, eu já começava com desejos difíceis que era pra não perder o costume.

Ignorando a bexiga cheia de uma mulher e o mau humor que aumentava a cada segundo em que não havia possibilidade de esvazia-la tão cedo, ele vinha. E pro meu azar não era o tipo que eu optaria por mandar embora antes de tentar uma conversa minimamente interessante. Oh céus, ele tinha mãos grandes e bonitas. E a minha calça jeans apertada não estava ajudando em nada, eu que sempre odiei usar cintos...

E de tanto pensar que um dia ele teria de chegar até mim se continuasse naquela direção, o tempo parecendo maior e maior, ganhei um oi cheio de dentes sorrindo só pra mim, acompanhado de um movimento rápido da mão esquerda levando a garrafa até a boca que poderia ser minha em poucos minutos, bastava querer.
Mas... eu contra ela, a vontade de ir ao banheiro. Eu contra um órgão do meu próprio corpo. Eu contra a natureza, mas ser belo também é tão natural... E ele sorria com os olhos pretos amendoados também.
Os segundos passando devagar, a música aumentando de volume, a batida ficando mais forte, eu junto tudo e percebo: ele usa um bom perfume, é do tipo vaidoso. Academia quatro vezes por semana, pomada para o cabelo, certeza que ganhou o cordão de prata da mãe aos dezoito anos e nunca mais tirou do pescoço, tudo bem, gostar da mãe é tão raro hoje em dia.

Ele se aproximava mais do que o recomendado de quem está na situação garota-solteira-à-procura. Feliz ano novo, fala e já coloca a mão direita na minha cintura. A mão direita sobre a blusa branca que viu sua existência justificada em uma noite de réveillon depois de um ano inteiro no armário. Sim, eu quero um ano novo muito feliz, quero tudo o que for belo e puder sorrir desse jeito e pintar o mundo com cores tão vivas.

- Não acredito em ano novo.

Foi só o que eu consegui dizer. As luzes, as pessoas dançando Os Tribalistas, uma falsa loira quase derrubando um copo inteiro de vodka nos meus sapatos e foi só o que eu consegui dizer. Ele não entendeu, ele não precisava entender nada, basta sorrir, meu bem, você já provou que consegue fazer tão bem...

- Ahn, oi?

- Oi, tudo bem?

Você não precisa dizer muita coisa nessas situações, aprendi isso antes de saber que descrições de autores em orelhas de livro são escritas pelos próprios autores. Você só precisa:

a)      Sorrir
b)     Deixar sua boca, seu corpo e sua dignidade disponíveis
c)      Fazer pose de garota que diz sempre sim

Nesse último quesito, confesso, tinha certa dificuldade. As garotas que dizem sim são um grupo que abomino 364 dias por ano, afinal, tem o meu aniversário e a gente precisa dizer sim quando quer ter atenção. Mas sorrir e ficar disponível, bem, isso estava até sendo fácil diante da situação que me incomodava da linha do umbigo pra baixo.

- Quer ir lá pra fora comigo? Aqui dentro não dá pra conversar direito.

Eu iria pro inferno com ele se me garantisse que lá teria um banheiro lindo e espaçoso só pro meu xixi de ano novo.

- Por que não, né?

Ele não ouviria isso nem as frases que eu tentei dizer pelo caminho enquanto me puxava pela mão entre casais que se beijavam, garotas que dançavam até o chão e seguranças frustrados com o tédio de assistir a diversão alheia com ar blasé.

As frases que eu disse - sabe Deus quais foram - não eram importantes, eu entendendo isso a cada esbarrão que dava, a cada vez que ele apertava minha mão mais forte, virava pra trás e olhava como quem pergunta se estou bem. Bem, baby, bem desesperada pra ser homem e me aliviar em qualquer canto da rua, aquele poste ali estaria ótimo.

- Ufa... Achei que não ia conseguir tirar você de lá.

- Você me tirar de lá é o menor dos meus problemas...

O céu escuro sem nuvens, a rua vazia, o mundo vazio, uma lata de cerveja derramada na calçada pra lembrar que...

 - Como assim?

Você não precisa entender, querido, aliás, você não deve entender nada. Me diga que não entende nem a raiz quadrada de quatro e eu te perdôo por qualquer coisa que tenha feito até hoje.

- Xixi, eu preciso ir ao banheiro. E tem que ser... agora. E não tem banheiro aqui fora e as meninas bêbadas estão fazendo filas quilométricas pra entrar lá dentro e errar o vaso sanitário e jogar fora todo o papel higiênico no lugar errado!

- Você precisa ir ao banheiro... agora?

- Não, eu preciso de um padre pra confessar meus pecados antes de cortar os pulsos. Você tem um canivete?

- Vem comigo então!

Eu sendo levada pela mão e já estava me acostumando a ter um homem bonito me levando pra todo lado. Eu poderia ser essa, ele me salvando do apocalipse, bombas caindo, zumbis comendo pessoas e ele me puxando com a mão apertada em meio às multidões. Garotas, olhem pra mim: ele usa camiseta branca, tem um cheiro bom e me salva de mim mesma. O que mais eu poderia querer?

Atravessei o bar de uma ponta à outra, quase inconsciente. Tudo bem se eu fizer aqui mesmo? Podemos parar e eu vou ali atrás do balcão, que tal? E se você pegasse um copo de plástico pra mim e eu fosse ali no cantinho? As pessoas não vão notar, menino. Elas estão preocupadas com suas vidinhas pequenas e sem cor.
Lá na outra ponta ele abriu uma porta de vidro que dava pro quintal do lugar, um banco de madeira, uns matinhos e um muro que dividia o espaço com o final da rua.

- Aqui ninguém usa.

Hum? Quer que eu faça xixi na sua frente ali no arbusto, é isso? No muro, é isso? Ok, feliz ano novo pra você também.

Ele sorria e de repente não tinha mais a garrafa de cerveja na mão. Ela, com cinco saudáveis e belos dedos, segurava meu ombro e ficava tão bem parada daquele jeito. A outra apontava um lugar escuro que eu, míope, não enxergava.
- Não, sua boba, ali tem um banheiro que os clientes não usam. Tá vendo atrás do banco a porta? Pode ir lá...
Eu posso! Eu poderia pintar as rosas brancas de carmim se ali houvesse roseiras, ah poderia. Conseguia ouvir os fogos de artifício com duas horas de atraso. Efeito retardado causado por felicidade instantânea.
- Ah. Agora você vai embora e eu descubro que isso tudo foi um truque da minha mente pra eu encontrar um banheiro decente. E você na verdade é um amigo imaginário que eu criei só pra não me sentir sozinha nessa festa. E eu vou ali e quando voltar você vai ter...

Ele parou de sorrir e me puxou pra perto, a minha blusa branca se sentindo feliz pela segunda vez em tão pouco tempo e já valia mais do que o preço pelo qual foi vendida, e valendo mais e mais quando ele apertava o tecido com força o suficiente pra me fazer entender. Chegou perto, bem perto do ouvido e dos meus cabelos e da minha alma se eu ainda tivesse alguma naquele nível de tortura.

- Eu vou estar aqui...

Olá banheiro, adeus ano velho. E era o xixi mais feliz feito na minha vida toda.

Olhando pro céu com as duas mãos no bolso da calça e um jeito cativante de quem deveria estar exatamente naquele lugar, ele me esperava. Alto, lindo e pronto pra uma garota que (uh, agora sim!) acreditava em anos novos.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

A alegria do fim



E o que seria de nós se nada terminasse, sem recomeços? Uma vida sem morte ou adeus, um pacote de bolacha infinito, uma fonte de Coca-Cola eterna?

Sou fã de recomeços. Sou contra ciclos que se fecham porque todos dizem que têm de ser fechados. Final de ano não é mais do que uma coleção de datas no calendário social que nos obriga a agir como Polianas que gostam de abraçar a família e ver a programação especial da TV aberta.

Minhas fases e ciclos se fecham, meu bem, de modo totalmente aleatório. Claro que a gente fica tentado a encerrar algumas coisas em dezembro, inciar outras em janeiro e prometer que a vida vai mudar, ora se vai!

Aí criamos mil motivos pra começar novos ritos, novos hábitos, cultivar novas flores no quintal. Que geralmente não florescem muito mais depois, igual orquídeas. Uma vez só e lá está o vaso com um galhinho estéril. Mas a gente fica, eu sei, tentado a escrever retrospectivas, agradecimentos, análises que no fim das contas não servem pra nada.

Porque está tudo começando e terminando o tempo todo no meu universo paralelo. Como um buraco negro que sai dentro de outro, últimas páginas que viram as primeiras da próxima história.

Mas eu me esforço pra criar minhas listinhas de:
1) Metas para o novo ano! 

2) Coisas que não vou mais fazer

3) Pessoas, histórias, casos e músicas ruins que devo arquivar, simplesmente, lá no fundo dos gaveteiros cinzas que um dia hei de tacar fogo

4) Vontades de realizar as coisas mais diversas 

Pra depois rasgar e começar de novo. E de novo. Ao infinito. E aí que está a graça da grande piada que é a vida: um caderninho em que se escreve e depois apaga, depois passa caneta colorida por cima e depois errorex e aí vem a professora e fala: que feio, isso não é um caderno de menina.

Eu sei.


segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

É hora de!

Reparou que esse lado chato e melancólico é só um dos pedaços meus? Quando o texto começa a se arrastar com histórias de personagens silenciosos e perdidos no tempo e no espaço, ih, é ladeira abaixo.

É hora de... qualquer outra coisa.

Escrever humor, poesia, músicas que nunca serão cantadas. Pintar quadros para exposições, criar roteiros de tv, crônicas para jornais, unhas coloridas com pinturas abstratas, escrever nas paredes da casa toda e deixar escapar versos pelo corredor do prédio, descendo escadas, todos os degraus felizes porque podem finalmente ler Borges.

Ou não.

É hora de se reinventar. De me reinventar. E as cores da paleta são cada vez mais infinitas, se isso é possível, porque se não for a gente inventa mesmo assim.

É hora de o que for necessário ou bom ou colorido.

É hora, é hora.

Um, dois, três e... valendo!


Não é do tipo que

Luiza não é do tipo que dança. Na festa dos amigos da empresa mal sai do lugar. Se esforça pra mexer os pés quando a banda começa a dizer que o samba não pode morrer nem acabar. Ela não se importaria se. É que não tem na garganta aquele grito preso. Não quer falar nem botar a boca seja lá onde for, menos ainda no trombone. 

Não espera nada do mundo além das seis da tarde e o ônibus que nunca chega. Se arrepende do sapato azul que comprou. Pede um remédio pra dor de cabeça na farmácia. Esquece o número do telefone de casa e depois descobre que melhor é mesmo isso: o silêncio do fim do dia quando ninguém pergunta nada, nem quanto custa a camiseta polo da vitrine.

Entre a mão apertar o trinco da porta e o som se propagar em ondas invadindo a casa inteira existe um universo que nunca ninguém nota, nem ela. O vazio ocupa a mente de Luiza enquanto o merchandising rola solto no capítulo da novela. Mas não acredita mais em comerciais de shampoo. A geladeira cheia só significa que ela não descuida senão o vazio toma, além da mente, a casa inteira. Coloca a televisão no mute e agora sim o que passa na tela se parece com a sua vida. Um carrossel rodando em silêncio com cavalos que não vão sair nunca do círculo colorido onde foram colados. E a música pode ser qualquer uma, ela tem a chance de escolher. Então decide que o silêncio combina mais com o escuro do que com luzes e matizes. E também com a falta de movimento. Involuntário, só o coração bate e continua como se o mundo precisasse tanto assim de euforia. Ao contrário dela, o órgão tem ritmo. Uma pena, Luiza não é do tipo que dança.

domingo, 18 de dezembro de 2011

As cartas que eu não mando

O fim de ano não é o fim de tudo: outros dias virão

É inegável: gosto mais de mim indignada com o universo. A moça boazinha que é feliz não tem tanto talento quanto a que tem raiva de coisas, pessoas, portas ou buzinas de carro. Ela é meiga e querida mas tem papas na língua. “Ai, e se eu disser isso e então...” Então dane-se, minha filha, que o que tem de ser dito tem de ser dito.

Quando me falta paciência as coisas tomam formas mais exageradas, grandes, com cores berrantes e é impossível não reagir a tudo isso. A reação é como se fosse o resultado de uma complexa equação de vigésimo grau que algum professor idiota colocou no quadro, com doze linhas mais parênteses, colchetes e chaves. O resultado é sempre algo tão absurdo quando a expressão que deu origem a ele.

E daí?

Daí que todo o absurdo que está no rosto de quem sua debaixo de um sol quente nas ruas eu consigo enxergar. Consigo ver o que tem no silencio, aquilo que quer explodir e só precisa de um empurrãozinho que pode ser um “posso ajuda-lo?” ou mesmo uma pomba que pousa no fio de luz formando um ângulo perfeito sobre a rua suja.

E só.

Cuidado: eu mudei de lugar algumas certezas

As pessoas continuam a andar pelas lojas e ruas como se um dia não fossem morrer.
E simplesmente não dá para ignorar tudo.

O fato é que preciso escrever aqui o que sempre escrevi, não dá para extinguir isso tudo e pronto, a vida continua igual.

A vida nunca continua igual, as coisas mudam e pra mim mais rápido do que para vocês todos aí do outro lado. Meu dia tem buracos negros que me transportam para lugares diferentes a todo momento. Às vezes esqueço o caminho de volta, aliás.

“É tão emocionante conversar com você, tem sempre tantas novidades”.

É, eu tenho. Uma por semana, uma por mês, uma em cada canto do meu tédio de estar aqui onde eu estou.
Agora é tempo de as pessoas cretinas fazerem planos para o ano que vem e avaliar o que aconteceu nesse. Quando na verdade nunca dá para entender o que aconteceu ou por que.

Preciso de música, gente legal por perto e um pouco de espaço pra fazer os passinhos de dança que ficam presos dentro de mim por eternidades. Eu faço os passos por aí, escondida no hall dos prédios sem porteiros ou quando não consigo abrir a porta porque a chave emperra toda hora.

Pois é.