domingo, 18 de dezembro de 2011

O fim de ano não é o fim de tudo: outros dias virão

É inegável: gosto mais de mim indignada com o universo. A moça boazinha que é feliz não tem tanto talento quanto a que tem raiva de coisas, pessoas, portas ou buzinas de carro. Ela é meiga e querida mas tem papas na língua. “Ai, e se eu disser isso e então...” Então dane-se, minha filha, que o que tem de ser dito tem de ser dito.

Quando me falta paciência as coisas tomam formas mais exageradas, grandes, com cores berrantes e é impossível não reagir a tudo isso. A reação é como se fosse o resultado de uma complexa equação de vigésimo grau que algum professor idiota colocou no quadro, com doze linhas mais parênteses, colchetes e chaves. O resultado é sempre algo tão absurdo quando a expressão que deu origem a ele.

E daí?

Daí que todo o absurdo que está no rosto de quem sua debaixo de um sol quente nas ruas eu consigo enxergar. Consigo ver o que tem no silencio, aquilo que quer explodir e só precisa de um empurrãozinho que pode ser um “posso ajuda-lo?” ou mesmo uma pomba que pousa no fio de luz formando um ângulo perfeito sobre a rua suja.

E só.



A passagem do ano

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olhar e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras expreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles...e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasta renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

Carlos Drummond de Andrade

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