segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Mariana, a moça do livro.


O que acontece é que as pessoas precisam ver sinais para continuar a viver. Ir dormir todos os dias sem ter um sentido pra tudo isso é apavorante. Por isso ela acordou com a certeza de que, sim, as coisas não acontecem por acaso. Não foi de graça que ontem tropeçou na praça de alimentação com 700 ml de refrigerante sobre o homem de camisa azul. Sabia que 700 ml era um exagero na hora em que aceitou outros 200 por apenas mais 10 centavos. A ganância sempre chega com ares de inocência – só mais isso não vai fazer mal e custa tão pouco...

Os segundos mais longos desde que começara a trabalhar na agência de viagens do shopping. Que não era grande coisa, mas tinha o charme moderno de se trabalhar no grande centro de compras da capital. Tudo pertencia a ela, as coisas e as pessoas, os objetos e as sensações.  Ela, Mariana.

Mariana já conhecia de cor as expressões das vendedoras de roupas ou cosméticos, a sequência de cores da vitrine de bolsas e o espaço exato entre um sapato e outro que atraía a atenção de vítimas distraídas. Também sacava, só de bater o olho, o perfil do cliente da vez: feliz e despreocupado, com pressa e dinheiro na mão ou de ar meio blasé, mas que compraria o mundo se encontrasse a promessa certa de felicidade. E de ser olhada também.

Aliás, ser olhada era algo que a incomodava demais, demais. Com o passar dos dias percebeu que era fácil se tornar invisível: bastava usar o uniforme do trabalho. Assim passava despercebida facilmente pelas multidões loucas por batata frita e pelos garotos que dançavam freneticamente nas máquinas com música. E colocava. O uniforme, a maquiagem, a disposição de começar mais um dia sem a perspectiva de um amanhã mais divertido. O hoje já era suficiente quando ela não sabia se no dia seguinte o trabalho estaria no mesmo lugar. Com essa onda de terrorismo e terremoto, nunca se sabe. Se algo acontecesse, sempre pensava, que fosse enquanto pegava o ônibus pra voltar pra casa. Voltaria para o trabalho no dia seguinte e encontraria só destroços, mas poderia alimentar a certeza de que na verdade nada daquilo jamais existiu, sendo apenas cenas de um sonho muito lógico que sonhou várias noites.

Ela, Mariana. Mulher, 25 anos, solteira, atendente de shopping, um metro e sessenta, cabelos pretos sem forma nenhuma, formada em administração de empresas, com três casacos de lã no guarda-roupa e sem absorventes na bolsa para emergências. Ela que poderia ser descrita com menos ou mais palavras e mesmo assim seria a mesma mulher. Aquela que dá bom dia para todos os funcionários do shopping e chega sempre quatro ou cinco minutos atrasada, não importa o horário de seu trabalho. A que não gosta da palavra obturação e prefere tomar remédio com refrigerante. Ela.

Para ela tudo era apenas uma brincadeira, isso de trabalhar e se sustentar, crescer e se tornar responsável pelas torradas e o suco de laranja no café da manhã. E se não houvesse fome, tudo bem. Se não houvesse margarina, tudo bem. Mas os sucrilhos, esses ela se comprometia a manter no armário. Até mais do que o necessário. Que sucrilhos precisam de leite, isso é outra história. Disse que manteria os sucrilhos, o leite era aquele tipo de condição escondida nas letras pequenas de um contrato. A sua consciência e esperteza não lhe advertiram “ei, no contrato diz que os sucrilhos só têm graça com leite”, que se a tivessem avisado ela faria cara de inteligente e diria: “hum, eu sei, oras, nem queria mesmo”. Mas se caía num golpe da própria cabeça, nada de mostrar decepção. O barulho do sucrilho açucarado sem leite pode dar um ritmo novo e gostoso pro noticiário das seis da manhã na TV. E açúcar na vida nunca é demais.

Mariana precisa de espaço para viver. O apartamento poderia ser pequeno, mas tinha de ter o mínimo de ar para um amanhecer festivo. Que amanhecer festivo tem de ter um momento para se espreguiçar e tentar alcançar o teto, todo mundo sabe. Que se esticar feito um gato na cama pode trazer dores se ela, a cama, terminar bruscamente na parede, de maneira deseducada, também. Como se as pessoas não pudessem ter o menor dos prazeres nessa vida. “Não, espreguiçar-se é proibido, está no estatuto do condomínio, além disso, você precisa pagar a taxa de mudança, mesmo que não tenha entrado com móveis no apartamento nem usado o elevador nem derrubado suas coisas pelos corredores do prédio, tem de pagar porque está no estatuto, e cuidado na hora de se espreguiçar que os vizinhos não gostam de ouvir os barulhos íntimos de quem mora no mesmo andar”.

Mariana precisa de espaço para viver. E que o seu espaço seja diferente do espaço dos outros. Espaço no guarda-roupas até para aquelas peças que não usa e das quais definitivamente não gosta, que olha e fala: não, não gosto e fico horrível com ela. E que guarda para um dia se desfazer e ter a sensação de generosidade de quem doa suas coisas com o desprendimento necessário para se sentir bem e útil à humanidade.

O espaço de que precisa para viver nem é tão grande assim. Certa vez esteve em um restaurante em que havia um aquário com um dono sádico. Ao invés de encher o vidro com toda a água que é possível se colocar ali dentro, ele mantinha os peixes nadando em metade da água somente. Por que?, ela se perguntou e puxou o primeiro garçom que apareceu no caminho. “É que assim suja menos água e dá menos trabalho”. Claro. Faz assim então: reserva apenas 4 metros quadrados de sua casa para circular e viver. Assim você suja menos e tem menos trabalho. Que tal? Não disse, seria deselegante, achou.

O espaço de que precisa é assim: algumas horas no dia para fazer algo só seu, sem ninguém lhe perguntando: o que fez, o que está fazendo, o que vai fazer? É um espaço só seu em que não há expectativas nem projeções exageradas sobre o que deveria estar fazendo nesse momento: tarefas, trabalhos, uma preparação para uma vida que nem sabe se viverá.

O espaço de que precisa é claro, iluminado pela luz do sol ou pela luz amarela da sala quando resolve fechar as cortinas e ficar totalmente sozinha. Enquanto isso as pessoas lá fora vivem, e respiram e se preocupam com a conta de luz que ainda não chegou por causa da greve dos Correios.

Ela precisa às vezes se sentir sozinha, como se nas próximas horas o mundo fosse vazio e nada mais tivesse importância. Quando juntava essa solidão com um espaço mais ou menos arrumado e decente, ou seja, quando se dava ao trabalho de limpar seu apartamento e se sentir bem ali, ah, aí era a glória. Uma vida só dela, só dela, só dela. 

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