domingo, 5 de maio de 2013

Platonismo: a vida, o livro e o capítulo




Enxergar as consequências do platonismo na vida daquela moça é a coisa mais fácil do mundo. Ela passa os seus dias entre as possibilidades do universo paralelo, onde as milhares de coisas que não faz são realizadas das mais divertidas maneiras. As coisas que jamais aconteceram, essas eram as melhores. O beijo que nunca deu, a viagem que nunca fez, as amizades que não criou nos bares que não frequentou. O garoto com quem não ficou, o sexo que não aconteceu, o emprego que não conquistou, a faculdade que não fez, a rua por onde nunca andou e a árvore onde nunca escreveu seu nome. Das coisas não realizadas ela fez seu platônico mundo perfeito. E nele vive cada dia enquanto trabalha, caminha e respira no mundo real, onde nada é tão importante assim.

Mas se é pra contar a verdade, então é bom dizer que o platonismo só passou a ser a forma de viver dessa moça por causa de um garoto. O primeiro por quem foi apaixonada e que a fez negar pra si mesma qualquer chance de ser notada.

Eram os anos 90 e ele usava sempre uma camiseta regata laranja listrada, tinha olhos verdes e andava pelo pátio da escola do primário. O sol fazia sombras engraçadas no meio do jardim com arbustos e as crianças suavam, correndo sem rumo, até o fim do recreio. Às vezes brincavam de pegar, em círculos, enquanto ela comia bolachas wafer com iogurte.

Em uma manhã qualquer, ela estava no pátio, sentada, fazendo o que mais gostava: olhar as crianças e seus jeitos diferentes enquanto o sol esquentava seu corpo de dez anos de idade. Olhava para o garoto que pulava e brincava com amigos sem enxergar a gravidade da vida e, meu Deus, talvez nunca viesse a enxergar. E no pequeno intervalo de tempo entre ele tirar a mão do bolso da calça e olhar para o relógio digital, mexendo nos cabelos loiros que caíam sobre os olhos, ela se assustou com a descoberta que veio sozinha e a fez ter uma certeza absurda que não podia nem explicar, mas que deixava muito claro: ele nunca vai me dar bola. Nunca, nunca, nunca.

Nunca.

Como brincar de qualquer coisa depois dessa certeza tão funda, doída, e, para ela, totalmente real? Como pensar em tabuada e pronomes pessoais depois de um momento de lucidez que não combinava com a idade de uma garota que se arrumava todos os dias para que ele, só ele, olhasse pra ela daquele jeito de quem quer dizer algo e nunca diz? Como comer o sanduíche de queijo que a mãe iria lhe preparar assim que chegasse em casa? Como assistir o telejornal com o pai e depois ler gibis? Como viver depois?

Era só uma terça-feira da infância e a promessa de uma vida inteiramente platônica acabara de acontecer pra ela. Aos dez anos ela já não se via capaz de conquistar as coisas mais simples como um olhar de cinco segundos do garoto da quarta série. Obviamente que décadas de frustrações a esperavam, pacientemente, ainda que não soubesse que naquele momento em que acabara de definir seu papel no próprio futuro: a garota dos amores que não aconteceriam. Ou a garota que só não teria o que mais desejasse na vida.

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